JOSÉ LÁZARO BOBERG é formado em Pedagogia e em Direito. Advogado e mestre em Direito, foi professor dos ensinos médio e superior. Participa também do Centro Espírita João Batista, onde criou o Clube do Livro Espírita, Banca e Livraria. Como expositor é convidado para palestras em várias casas espíritas pelo Brasil.
Na entrevista a seguir, Boberg nos fala sobre esta sua nova e interessante pesquisa, a fonte Q, e que resultou no livro O evangelho Q, lançamento EME:
Após escrever O evangelho de Judas e O evangelho de Maria Madalena, o senhor nos traz mais um evangelho perdido: a Fonte Q. Qual a importância desta obra para os espíritas?
O evangelho Q, por ser um trabalho de pesquisa, traz não só aos espíritas, bem como a todo o mundo cristão, uma nova visão sobre os Evangelhos canônicos, em especial sobre os de Mateus e Lucas. De um modo geral, o mundo cristão aceita, sem qualquer contestação, que os Evangelhos de Mateus e de Lucas foram escritos por eles. Não é bem assim. Hoje já está pacificado entre os pesquisadores de ponta de que nenhum desses personagens escreveu, efetivamente, evangelho algum. Foram apenas usados seus nomes que eram conhecidos no cristianismo para dar maior credibilidade. Ao tomar conhecimento desses fatos, cai por terra o conceito de que eles são ‘palavras de Deus’, conforme afirmam os leitores da Bíblia. Na realidade, o que se tem, são escritores que “escrevem sobre Deus”. Para o espírita, em especial, a interpretação deixa de ser ‘mística’, para ser racional. Os textos não são mais palavras autênticas, mas aforismos que já existiam muitos anos antes, como repositórios de sabedoria dos povos mais antigos, antes mesmo de Jesus.
Explique aos leitores o que seria a Fonte Q. Como ela foi descoberta? Por que se chama Q?
No caso da descoberta de Q, não houve anúncio formal, comoção pública, nem a sensação de que algo secreto estava por ser revelado. Isto porque Q não foi encontrado em ‘esconderijo’ algum. Não apareceu de uma hora para outra um manuscrito de Q, intitulado, “As sentenças de Jesus”. Em vez disso, os fragmentos desse antigo documento foram encontrados, por acadêmicos, dispersos pelos evangelhos do Novo Testamento, que são textos mais do que conhecidos. Foi por acaso, na investigação das tradições assentadas nesses evangelhos, que, pouco a pouco, o livro Q veio à tona. Sua presença nos alicerces da tradição de Jesus, gradualmente, se impôs ante os estudiosos, que mal percebiam a grave importância de sua descoberta, uma vez que se tratava de material já tão bem conhecido. Com o desenvolvimento do estudo comparativo dos evangelhos, na busca do Jesus histórico, perceberam os estudiosos que os escritores dos Evangelhos ‘atribuídos’ a Mateus e Lucas, utilizaram-se, além do Evangelho de Marcos, ainda de outra Fonte, que foi denominada de Q (Quelle do alemão, que quer dizer “Fonte”).
O que o leitor irá encontrar em seu novo livro, O evangelho de Q? Faça-nos uma resenha.
- Em primeiro lugar, há de se considerar que se trata de um trabalho de pesquisa realizada pelas maiores autoridades sobre as origens cristãs.
- Pesquisadores do Seminário de Jesus, dos Estados Unidos, na busca do Jesus histórico chegaram à conclusão de que apenas 18% (dezoito por cento) do total de palavras e apenas 16% (dezesseis por cento) do total de ações atribuídas a Jesus nos Evangelhos ‘podem’ ser realmente consideradas autênticas.
- “Os evangelhos não são biografias ou relatos factuais da vida de Jesus. Todo o edifício da doutrina cristã está baseado em estórias de pescadores galileus no séc. I”. Ex-padre LUZ, Marcelo. Onde a religião termina?
- Não há nada do que o Jesus dos Evangelhos alguma vez disse e fez – desde o Sermão da Montanha até os milagres, desde a fuga de Herodes quando bebê até a própria Ressurreição – que não possa ser mostrado como tendo se originado milhares de anos antes, nos ritos de mistérios egípcios e em outras liturgias sagradas, como o Livro dos Mortos egípcio – Tudo já existia nas fontes egípcias. Ex-pastor Anglicano, HARPUR, Tom. O Cristo dos Pagãos.
- O texto de Q era apenas composto de um programa de sentenças, sem histórias dramatizadas, como foram escritos os evangelhos narrativos de Marcos, Mateus, Lucas, e João. Há, assim, um distanciamento do Jesus de Nazaré, filho de Maria, para o espírito do “Cristo” que morrera e ressuscitara. Daí a necessidade de separar o homem, Jesus de Nazaré e o Cristo – este uma construção teológica. Os mitos aparecem nos evangelhos narrativos.
- Detalhe importante e fundamental a ser dito é que esses membros de Q, não foram cristãos, no sentido empregado hoje. Eles não viam Jesus como um “Messias” nem como “Cristo”. Eles utilizavam apenas seus ensinamentos, mesmo porque esse negócio de “acusação ao judaísmo”, “morte como evento divino, trágico ou redentor”, sua “ressurreição dos mortos para governar um mundo à deriva”, nada representava para Q, que dava a estes textos outro sentido.
- Os ensinamentos de Q eram usados para enfrentar a turbulência do dia a dia. Mas nada de ‘cultos’, ‘louvores’ em que Jesus é venerado como um deus, nada de ritual, hinos para venerar a memória dele, tais como se fazem até hoje. É por isso que, com acréscimos constantes nos textos canônicos, o Cristianismo se transformou numa estrutura mística, em que Jesus foi divinizado como ”fazedor de milagres”, um ser mitológico, transportado de civilizações mais antigas, principalmente com a influência de greco-romana- egípcia.
- Não fosse a inclusão por Mateus e Lucas das sentenças em seus evangelhos, elas teriam sido perdidas. A recuperação do livro, que foi chamado de Q, segundo os pesquisadores, leva à conclusão de que ambos eram detentores de um exemplar desse evangelho.
- Houve uma ‘divinização’ das sentenças, como se fossem de origem divina, embora, humanas. Eram utilizadas pelo povo de Q, sem qualquer atribuição religiosa ou divina, mas como instruções para o cotidiano.
- Se contarmos trinta anos por geração, podemos classificar os evangelhos “por geração”, de cada 30 anos. É o tempo de vida daquela época (Jesus viveu, segundo os textos canônicos, trinta e três anos). Esses dois evangelhos, o de Q e o Tomé (também de sentenças), são considerados “Evangelhos de primeira geração”.
Por que a Igreja primitiva e boa parte dos padres da Igreja antiga omitiram a existência deste documento cristão altamente precioso?
Com o desenvolvimento do estudo comparativo dos evangelhos, na busca do Jesus histórico, perceberam os estudiosos que os escritores dos Evangelhos ‘atribuídos’ a Mateus e Lucas, utilizaram, além do Evangelho de Marcos, ainda de outra Fonte, que foi denominada de Q (Quelle do alemão, que quer dizer “Fonte”). Surgiram, então, métodos para reconstruir Q. A descoberta do Evangelho Q é assunto recente e, ao que se sabe, não havia sido descoberto pelos padres da igreja.
Isso explicaria por que os escribas da época não fizeram novas cópias de Q?
No início, era tudo muito difícil. Este documento, certamente, teria existido de forma escrita, nos tempos anteriores dos evangelhos canônicos. Da oralidade, que era a transmissão comum da época, pois só 10% da população era alfabetizada – os pesquisadores afirmam que existia um material escrito, que foi denominado Fonte Q. Era um evangelho de sentenças, diferente dos canônicos, que surgiram posteriormente, que se caracterizam pela forma de redação, como narrativos.
Seria correto afirmar que as coleções de provérbios, como Q e o Evangelho de Tomé representam os primeiros materiais cristãos em um ponto inicial de uma trajetória que acabou resultando nos evangelhos canônicos?
Não há dúvida! O Evangelho Q e o Evangelho de Tomé (evangelhos de primeira geração) foram os primeiros materiais que subsidiaram a elaboração dos evangelhos canônicos que só surgiram lá pelos anos 70, considerados evangelhos de “segunda geração”. Não podemos deixar de anotar que também as cartas de Paulo são de primeira geração. Entenda que o evangelho Q é do mesmo tipo de O Evangelho de Tomé, embora sua descoberta só tenha ocorrido em 1945, em Nag Hammadi, no Egito. Era também um evangelho sentenças, do mesmo tipo de Q. Eram eles contemporâneos e foram escritos do mesmo tipo: só de sentenças. Para melhor elucidar, vejamos – a titulo de exemplo – algumas sentenças (ao todo são 114, logions ou sentenças), atribuídas a Jesus, no Evangelho de Tomé: Se um cego conduz outro cego, caem ambos no poço (n.º 34); Nenhum profeta é aceito em sua cidade. Um médico não cura aqueles que o conhecem (n.º 31); Aquele que descobrir a interpretação destas palavras não experimentará a morte (n.º 1); o cisco no olho do seu irmão você vê, mas a trave no seu olho você não vê. Quando retirar a trave dos seus olhos, então você verá como retirar o cisco do olho de seu irmão. (n.º 26).
É verdade que algumas das mais notáveis porções do Novo Testamento, como as bem- aventuranças, o amor aos inimigos, a parábola da Ovelha Perdida e da Festa de Casamento, e até mesmo a Oração do Pai Nosso, entre outras, são creditadas terem sido originados em Q?
Na verdade, os pesquisadores concluíram que os chamados evangelhos canônicos (Marcos, Mateus, Lucas e João) foram construídos paulatinamente, tendo sua conclusão só com o Concílio de Nicéia, em 325, por ordem do imperador Constantino. Eram também formados de sentenças, tomando a forma narrativa só muito mais tarde. Destacamos que muitas porções que constam em o Novo Testamento são originárias de Evangelho Q e atribuídas a Jesus. Ao ler o livro, você encontrará além das porções questionadas acima, no texto 3, desta obra, outros conteúdos aforísticos de Q, que se constituirão em surpresa, porque sempre foram tidos como palavras de Jesus. Aliás, o próprio Kardec alerta em O evangelho segundo o espiritismo, cap. XXIII, item 3: “Importaria, primeiro, saber se ele (Jesus) a pronunciou”, ou, “se colocaram em sua boca”. (acrescentamos).
Quais as diferenças entre o Jesus dos evangelhos canônicos e o Jesus do evangelho Q?
Os evangelhos atribuídos a Mateus e Lucas são ‘cópias’ de duas fontes: de Marcos e de o Evangelho Q. Para mostrar essas semelhanças, desenvolvemos na Terceira parte desta obra, Comentários ao Evangelho Q, em que colocamos em primeiro plano, o conteúdo de Q, para, na sequência, em colunas paralelas, mostrarmos os mesmos conteúdos que aparecem em Mateus e Lucas, seguindo de comentários cada conteúdo. Com os Evangelhos do lado, o leitor pode acompanhar este estudo comparativo.
A descoberta de Q obrigou os estudiosos a rever a construção dos ‘mitos’ em torno de Jesus? Neste caso, qual seria o propósito de seu livro, O evangelho de Q?
O espiritismo segundo Kardec, deve acompanhar a ciência, mudando, se for o caso, no ponto em que a ciência descobriu, sob pena de se descaracterizar. Lembremo-nos de que o espiritismo, segundo seu organizador, “é uma filosofia, calcada na ciência com consequências morais”. O propósito deste livro é buscar a verdade (Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará!), separando o que é do Jesus histórico (real) o que do Cristo de fé, construção teológica, por interesse das organizações religiosas.
O fato de que não existe nenhum manuscrito de Q atualmente não argumenta necessariamente contra a sua existência? Como um documento tão importante, que foi a base de dois evangelhos canônicos, pode ser totalmente perdido?
É óbvio que há contraditores quanto à existência deste Evangelho Q. A hipótese tradicional é que essa ‘fonte’ chamada “Q” era um Evangelho só de “provérbios”, sem o relato da crucificação e da ressurreição, mais ou menos como o texto gnóstico de Tomé. Ao longo dos anos, essa hipótese (não se descobriu nenhum documento) gerou muitos livros e uma infinidade de teses de doutorado, e os historiadores ainda a consideram válida. O pesquisador e estudioso das fases iniciais do Cristianismo, Michael Goulder, de Birmingham, Inglaterra, não acreditando na hipótese de Q, num artigo publicado por uma prestigiosa revista acadêmica, com o título “Is Q a Juggernaut”, acredita que a explicação mais simples do material ausente em Marcos é que Lucas, ao escrever seu Evangelho, teria se baseado tanto em Mateus quanto em Marcos”. Mesmo que assim fosse aceito, com descarte do Evangelho Q, podemos ratificar o que temos defendido: os Evangelhos não são “palavras de Deus”, mas sim, palavras sobre Deus, escritas pelos homens.
E que mensagem deixaria aos nossos (as) leitores (as)?
Queremos, ao finalizar esta entrevista, deixar claro ao leitor que não pensem que o objetivo destes estudos, seja ‘denegrir’, ‘excluir’ e, muito menos, suscitar a controvérsia sobre Jesus de Nazaré, embora seja inevitável. Nosso propósito é tão-somente o de separar o joio do trigo, mostrando o que é ‘histórico’, e o que é apenas fruto da ‘construção teológica’ do personagem Jesus.
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