Certamente que o suicídio do ator Flávio Migliaccio nos atinge profundamente e nos enternece, deixando-nos a melancolia que parece nos acusar de havermos falhado para com ele.
Espírito sensível, idealista, aguardando a cada dia uma mudança de hábitos da sociedade, com a esperança já cansada por não ver a vitória da poesia, da fraternidade e da amizade sincera entre os homens, foi capitulando aos poucos, em uma espécie de suicídio em gotas, até que a última delas causasse o transvasamento do cálice e o rompimento do dique onde as reservas morais e afetivas teimavam em sobreviver.
Muitos suicídios são assim: primeiro o homem mata a esperança que há em si, depois a confiança nos amigos, segue-se a morte do ânimo para lutar e, finalmente, sepulta a fé antes de matar a si próprio, pois sem fé já não resta nada.
Decepção e desapontamento
Acredito que tenha sido um problema de percepção. Ele se deixou estacionar em um ângulo da estrada que não lhe permitia ver os milagres do dia a dia, a luz que afugenta as trevas, o exagero de beleza e de misericórdia com os quais Jesus nos presenteia todos os dias, o canto dos simples, a poesia dos humildes, o espetáculo sem igual de ver o sol surgir ao amanhecer em um planeta azulado trazendo mensagens de Deus, as orações dos imortais, a coragem das mães, a ternura e a fidelidade que há entre os cachorros vadios…
Inúmeros se encontram nesse estado de decepção com a sociedade, de desapontamento com os amigos, de descrença nos homens públicos, de desilusão com tudo ao redor. Esse estado de abatimento nasce da observação do prolongado estágio no qual o mundo parece adormecido. Se o espírito não tem uma fé sólida, uma esperança teimosa que resiste aos desencantos, a certeza da sua origem e destinação, aparta-se das correntes de sustentação que alimentam sua alma.
Corações sombrios
Em verdade ele foi somando os desatinos humanos representados pela falta de ética, o abandono dos idosos, a crueldade para com as crianças, as agressões à natureza, a degradação da arte, a decadência da mídia, o sofrimento dos animais… e isso é dose letal para quem julga que um espaço de 85 anos é o suficiente para o bem florescer em todos os corações. O amor caminha milimetricamente neste mundo, mas uma gota dele é capaz de libertar milhares de corações sombrios.
Por isso digo que foi um suicídio em gotas, pois ninguém desiste de viver de um dia para o outro. A sucessão de desencantos, a supremacia do desassossego sobre a delicadeza surge aos poucos quando não se tem a visão ampla e profunda de que o bem e o belo são infinitamente maiores que os males em qualquer ambiente.
Olhos de ver
O maior perigo para o espírito é se dissociar da beleza. O mundo é hostil, mas a beleza é gentil, habita em qualquer espaço. É preciso ter olhos de ver. Nós que o amávamos julgávamos que ele aprendera essa lição por ser um artista, que poderia caminhar sozinho sem as consolações que a fé e a esperança propiciam, por isso estamos tristes. Mas nossas orações o acompanham em seu transporte para a verdadeira morada; nós que em nossa vida o colocamos por sua arte, não o deixaremos fora dela agora que parte.
Até um dia velho amigo! Os que se amam nunca se apartam.
LUIZ GONZAGA PINHEIRO, professor e escritor com mais de duas dezenas de livros publicados pela Editora EME, reside em Fortaleza (CE)