HISTÓRIA FALSEADA E HISTÓRIA REAL

Brasil-Jesus

Progresso de leitura

Todo e qualquer estudo que pretenda compreender o processo histórico do pensamento espírita fundamentado em Allan Kardec necessita revisitar o caminho do desenvolvimento doutrinário, considerando os aspectos direta ou indiretamente relacionados aos três pontos acima elencados. Por mais que os defensores da correlação entre Roustaing e Kardec a promovam, utilizando para isso um discurso uníssono, nenhum documento, nenhuma evidência, nenhuma prova por mínima que seja, a favor de Roustaing será possível encontrar. O contrário, porém, é verdadeiro.

Se na França a secularização aplacara os sonhos da religião dominante, no Brasil a secularização tardou e, por isso, propiciou a que o roustainguismo florescesse, mesmo à custa dos prejuízos incalculáveis aos propósitos originais do espiritismo.

Vamos, pois, aos pontos importantes do começo disso tudo no Brasil.

A FONTE IDEOLÓGICA DA FEB

Em seu Escorço histórico da Federação Espírita Brasileira, o autor e ex-presidente, Juvanir Borges de Souza, relaciona diversas personalidades de expressão ligadas à história da instituição desde os seus primórdios.

Dentre os nomes relacionados, cinco deles estão diretamente ligados ao objeto de nosso estudo aqui, ou seja, o Grupo Sayão. São eles: Antônio Luís Sayão, Francisco Leite de Bittencourt Sampaio, Frederico Pereira da Silva Júnior, João Gonçalves do Nascimento e Adolfo Bezerra de Menezes. O Grupo Sayão adquiriu esse nome pelo fato de realizar suas reuniões no escritório de Sayão, advogado que era.

O Grupo Sayão fez publicar em 1893 as sessões realizadas no período de 15 de julho de 1880 a 15 de abril de 1881 no livro Trabalhos espíritas de um pequeno grupo de crentes humildes. Um total de 59 sessões semanais. O objetivo era propagar a missão do grupo revelada e reforçada pelas mensagens dadas supostamente por grandes nomes, entre eles ‘Allan Kardec’, Anjo Ismael e os Evangelistas. Eram esses espíritos, segundo Sayão, que garantiam a missão especial que o grupo possuía, isto é, levar avante a disseminação do roustainguismo em sua aliança com o espiritismo. A análise dessas mensagens e de como as sessões se desenvolviam – sob o domínio de um misticismo exacerbado e de crença absoluta nas personalidades invisíveis – conduz exatamente no sentido contrário. E mais, reforça a tese das bases culturais sobre as quais ergueu-se e se constituiu o espiritismo brasileiro capitaneado pela FEB.

“ANJO ISMAEL”

Quando e como a revelação sobre Ismael ocorreu?

No livro Escorço histórico, o autor (Juvanir Borges de Souza, ex-presidente da FEB), refere-se ao Grupo Confúcio como a associação primeira aonde as raízes da FEB estariam plantadas. É verdade que o Regulamento do Grupo Confúcio anota como o guia da instituição a figura de Ismael. Está lá escrito em seu artigo 28: “O seu espírito protetor é o de ISMAEL que seus membros escolheram para seu guia espiritual”. Não há qualquer outra referência ao espírito e sequer é ele designado por Anjo.

Por outro lado, torna-se impossível não estabelecer uma ligação entre o Anjo Ismael, o Grupo Sayão e o Grupo Ismael, os três mencionados em documentos, revelando uma interligação entre si. O Grupo Sayão, como o próprio autor anotou, forneceu à FEB quatro das personalidades consideradas por ela de grande importância na sua história. Pois bem, foi no Grupo Sayão que Ismael, o Anjo, apareceu com elevado destaque, manifestando-se mediunicamente, em especial através do médium Frederico Jr..

Ora, esse Anjo Ismael era um espírito impostor e sobre isso não pairam dúvidas, bastando observar com mediana atenção (…) as mensagens a ele atribuídas. De qualquer forma, como não há qualquer indicação de fonte, a afirmação fica prejudicada. Se o Ismael do Grupo Sayão era um impostor e o Ismael do Grupo Confúcio era confiável, significa que não são os mesmos espíritos. Nesse campo especulativo, tudo leva a crer que o Ismael que se instalou na FEB é o Ismael do Grupo Sayão, por um elemento comum a ambos, Grupo Sayão e FEB: a crença e a defesa indiscutível de ambos da doutrina de Roustaing.

Em 1873 o Grupo Confúcio é dissolvido por Ismael e para o seu lugar o Anjo cria uma sociedade, de nome “Deus, Cristo e Caridade”, que encontrará seu termo ao alterar suas concepções (…) gerando a divisão entre místicos e científicos. A nova Sociedade Espírita Fraternidade, criada logo após, torna-se a sucessora natural da anterior, salvando-se dos escombros aqueles poucos obreiros que permaneceram fiéis a Ismael. É também onde Bezerra de Menezes começa a fortalecer a sua imagem de condutor e mestre.

A saga, porém, não estava concluída. Os científicos mais uma vez se tornaram obstáculo aos místicos e a fraternidade se modificou, exigindo dos crentes a busca de novos ares. Bezerra acorreu à FEB que estava em situação difícil e para lá transportou os Estatutos da Fraternidade, ou seja, a concepção de um espiritismo místico, piedoso, essencialmente evangélico. Bezerra tornou-se assim uma espécie da representante direto de Ismael na Terra, embora ele, Ismael, continuasse agindo diretamente sobre os destinos da doutrina (…).

O MÉDIUM CHICO XAVIER

Sobre nenhum médium se escreveu tanto, nem se continua a escrever, como sobre Francisco Cândido Xavier. A sua obra, inigualável em número de títulos e em extensão, encontra-se, entre tantos outros setores, também implicada com a questão do movimento espírita brasileiro, especialmente o livro Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho, lançado em 1938 com a assinatura de Humberto de Campos.

Esse livro é objeto de análise e apreciações críticas sob diversos aspectos, desde a linguagem quanto aos fatos abordados. O que desponta como elemento histórico importante em relação ao movimento espírita brasileiro é a afirmação que apresenta a respeito de Jean Baptiste Roustaing (página 72), colocando-o como um dos missionários designados para auxiliar Allan Kardec em seu trabalho de estruturação da doutrina espírita. No referido texto, temos a afirmação de que João Batista Roustaing organizaria o trabalho da fé, frase esta que tornou-se um mantra para os adeptos de Roustaing, mantra repetido à exaustão desde pouco depois do lançamento de Os quatro Evangelhos, em 1866. Este mesmo mantra servirá de estímulo para que a FEB aplique em seu Estatuto de 1954, pós-Pacto Áureo, a indicação de que o livro Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho se torne referência obrigatória no espiritismo brasileiro, tendo sido inserido, antes da reforma estatutária de 1954, no próprio texto do documento assinado por diversas lideranças espíritas, depois popularizado como Pacto Áureo.

Eis que, assim, Chico Xavier passa a ter presença, mesmo que a contragosto, na sustentação da suposta parceria entre Roustaing e Kardec.

UM CRIME PARA ACOBERTAR OUTRO?

Uma das melhores análises da obra Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho é feita por Leonardo Marmo Moreira¹, quando reflete sobre cada um dos 30 capítulos da obra de Chico Xavier. Antes dele, porém, inúmeros autores espíritas apontaram as incoerências que geram desconfianças sobre a lisura da obra. Entre esses, como o primeiro ou um dos primeiros, está Julio Abreu Filho, primeiro tradutor para o português dos 12 volumes da Revista Espírita. Abreu Filho estranhou – e com veemência denunciou – o fato de exatos um ano antes da aparição de livro Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho haver sido lançado o livro Crônicas de além-túmulo, recebido também por Chico Xavier e assinado pelo mesmo Humberto de Campos, no qual se encontra uma mensagem de igual teor em que só são citados Camille Flammarion, Léon Denis e Gabriel Delanne, sem nenhuma referência a Roustaing. Trata-se da crônica de número 21, intitulada “O grande missionário”. A primeira edição desse livro é de 1937, enquanto o livro Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho é de 1938. Terá havido interpolação no livro Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho?

A resposta à pergunta formulada seria de fácil solução se pudessem ser consultados os originais do livro Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho. Bastaria à FEB colocá-los à disposição dos interessados. Entretanto, após inúmeros e insistentes apelos, a FEB passou a informar que, à triste semelhança do que ocorreu com Leymarie em relação a inúmeros documentos de Kardec que mandou incinerar, os originais do livro Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho foram queimados, o que inviabilizou qualquer tentativa de comprovação.

A questão se agravou e gerou uma pergunta ainda mais incisiva: um crime para acobertar outro?

PLÁGIO VERGONHOSO

Em sua obra¹, Leonardo Marmo Moreira entra no mérito do que seria uma missão segundo os espíritos, interpretando-a comparativamente aos três missionários citados e arremata com notável bom-senso: E Roustaing? Nada! Simplesmente a missão da “organização do trabalho da fé”! Da forma como está colocado, o texto, além de ser, ironicamente, um comentário que remete, mais uma vez, ao jargão católico, sugere, indiretamente, uma espécie de “fé cega”.

Moreira transcreve em seu livro a posição de Herculano Pires que muito bem se encaixa na questão da suposta “organização do trabalho da fé” atribuída a Roustaing:

O espiritismo rejeita toda mitologia de ontem, de hoje e de amanhã. Sua função é de transformar os erros em verdades, como se lê em Kardec, e não em remendar as mitologias antigas com novos ridículos mitos, como Roustaing tentou fazer em sua obra mistificadora, em que a obra kardeciana é deformada por um trabalho de plágio vergonhoso e de remendos adulteradores que denunciam a debilidade mental do autor.

WILSON GARCIA no livro Ponto final- o reencontro do Espiritismo com Allan Kardec (adaptado)

¹ Em Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho? Uma análise crítica