Um ano depois da publicação de O livro dos espíritos, Allan Kardec fundou a Revista Espírita (1858). A mediunidade psicográfica dava seus primeiros passos e, se já existiam poesias mediúnicas, o mesmo não se podia dizer do romance mediúnico.
Naquela época, já circulavam por Paris alguns romances de temática espírita publicados em folhetim – um procedimento literário e editorial tão a gosto do século 19. Posteriormente, estes textos eram transformados em livros.
Estes romances foram objetos da crítica do próprio Allan Kardec que, na terceira parte do opúsculo, Catálogo racional das obras para se fundar uma biblioteca espírita, expõe uma lista de romances que, pela temática, considerou pertinentes para a divulgação da ideia espírita. Alguns dos romances citados na listagem receberam maior atenção de Kardec, pois, embora apresentassem desvios de alguns preceitos doutrinários, tais textos retratavam os temas espíritas de forma incisiva.
O primeirão
Spirite, do escritor francês Théophile Gautier, é um deles. Na Revista Espírita de 1866, Kardec ressalta que este romance tem sua importância por veicular pensamentos essencialmente espíritas e exalta a profunda sensação produzida pela obra por toda a Europa desde 1865, listando uma série de opiniões significativas da imprensa francesa e estrangeira acerca do romance.
Por tudo isso, Spirite é, de fato, considerado o primeiro romance espírita da história. Curiosamente, trata-se da última grande obra de Gautier. O primeiro texto de cunho fantástico assinado por ele, La Cafetière¸ apareceu em 1831, somente um ano após sua primeira publicação. O autor permaneceria então fiel ao gênero por trinta e cinco anos. Ao todo foram quatorze narrativas consideradas fantásticas através das quais o autor demonstrava um intenso desejo de fuga da realidade por meio da valorização do sobrenatural, ainda que seja um sobrenatural ambíguo, com possíveis explicações concretas.
No Brasil, a editora O Clarim lançou o romance com o título O ignorado amor, cujo enredo se passa na Paris do século 19. Guy de Malivert está saindo com uma jovem viúva, Madame d’Ymbercourt, mas, por não nutrir um sentimento muito profundo por ela, decide lhe escrever, ainda que a contragosto, uma carta de rompimento. Mais tarde, um discípulo de Swedenborg, o Barão de Féroë, dá-lhe um estranho aviso: “Permaneça livre para o amor, que talvez venha visitá-lo”.
A partir daí os “sinais do além” começam a se multiplicar, incluindo a aparição, em um espelho de sua casa, dos traços da cabeça de uma jovem que batiza Malivert batiza de espírita (em francês, Spirite, título original da obra).
Esta aparição virginal revela ser uma alma que, em sua vida terrena, amou Malivert loucamente e, desiludida ao saber de seu plano de casamento com a condessa de Ymbercourt, entrou para o convento aos dezoito anos, onde morreu um ano depois. Indicado pelo Barão de Féroë, Malivert vai ao túmulo da jovem, cujo nome verdadeiro é Lavinia d’Aufideni, e ali acredita vê-la. Deste momento em diante, sua existência se divide em duas partes distintas, uma fantástica (tão longe) e outra real (tão perto). Este foi o motivo que levou a tradutora Cristina Flores a optar pelo novo título da obra, Tão longe, tão perto, que está sendo relançada pela EME.
O mágico das letras
Charles Baudelaire, um dos mais famosos poetas da tradição lírica francesa, se refere ao amigo e mestre Théophile Gautier como “poeta impecável” e “perfeito mágico das letras francesas”. Em Tão longe, tão perto ele às vezes atinge alturas de engenhosidade e poesia. A atmosfera reina suprema neste romance na fronteira do mundo dos vivos, carregada pelo indiscutível charme da narração. A trama se desenrola sem nenhum cansaço e, enquanto Guy de Malivert vê sua existência virar de cabeça para baixo ao se apaixonar por uma “fantasma”, Gautier atrai o leitor destilando habilmente várias pistas sobre aquele espírito encantador, fazendo-o avançar ao lado de Malivert – um jovem perdido; ainda não morto, mas não mais vivo.
Consagrado como poeta parnasiano, foi através de seus contos fantásticos que Théophile Gautier se revelou um escritor rico em imaginação, capaz de fazer surgir discursos grandiosos ou inquietantes, mas também cheios de emoção. A presença do amor ligado à morte se faz notar em vários de seus textos. Porém, em Tão longe, tão perto, através da jornada iniciática de Malivert, Gautier nos conta sua própria história: a de um escritor decepcionado com a vulgaridade de seu tempo, mas que mantém uma fé intacta no poder. Dentro deste cenário, a espiritualidade constitui um vibrante apelo em favor da beleza.
Após quarenta anos de produção e forte influência na cena artística francesa, Gautier morreu aos 61 anos.
(Para maiores detalhes sobre este livro e seu autor, clique AQUi)