Progresso de leitura

Este testemunho está em uma das mais belas obras – e também uma das menos lidas – de Allan Kardec, O Céu e o Inferno, que foi publicado pela primeira vez em agosto de 1865, em Paris.

É curioso ver o “planejamento” cuidadoso com que a Codificação chegou aos homens. Tudo a seu tempo, um passo após o outro. Foi preciso que antes viesse O Evangelho Segundo o Espiritismo para depois surgir O Céu e o Inferno.

E a EME, seguindo essa mesma dinâmica, publicou todas as obras do Pentateuco respeitando os textos originais de Allan Kardec.

Mas o que desejamos tratar aqui é a atualidade dessa doutrina, que não envelhece, não sai de moda; ao contrário, a cada dia, os seus ensinos aí estão à prova, resistindo aos avanços da Ciência e respondendo às questões mais complexas do comportamento humano.

E foi lendo O Céu e o Inferno que conheci o interessante testemunho do espírito que se identificou como “Um boêmio”.  Depois de confessar os abusos praticados e lastimar a própria sorte, esse espírito passou conselhos aos homens, para que não se deixassem escravizar pelas paixões deste mundo. Ele diz: “Não era um homem mau, mas tudo que fiz na minha última existência terrena, foi atender aos próprios caprichos, sem me preocupar com aqueles que viviam a meu lado. A minha punição, deste outro lado, está justamente em querer – e não poder – gozar as mesmas paixões da taberna”.

Sua confissão foi seguida pelas instruções de um sábio, guia da médium, que falou do que ocorre aos que desencarnam presos às paixões e vícios como o alcoolismo, o tabagismo e outros. “A influência da matéria os acompanha no além-túmulo, sem que a morte ponha fim aos apetites que seus olhos, tão limitados quanto na Terra, buscam em vão satisfazer. (…) É necessário, então, que vivam nessa tortura moral, até que, vencidos pelo cansaço, decidem erguer os olhos para Deus”.

Em minha outra atividade, como terapeuta em dependência química, observo atentamente os processos obsessivos associados ao vício. E constato que a recuperação de um adicto começa dentro dele mesmo, quando este se decide a mobilizar todas as forças de sua vontade e, de fato, deixar o vício.

Pela lei de sintonia, os afins se atraem e se comprazem nos gostos. E os bebedores inveterados normalmente são acompanhados no vício por espíritos que também se entretêm naquela preferência. Álcool também é droga!

Outra característica clássica dos bebedores é não se lembrarem, no outro dia, do que fizeram na véspera. E tentam esconder-se atrás desse argumento, como se isso pudesse isentá-lo de culpa ou mesmo dolo, o que, em linguagem jurídica, significa intenção.

De fato, após a carraspana, a embriaguez, ocorrem os tais apagões de memória, ou chamado blackout alcoólico. O indivíduo tem uma perda temporária de memória, causada pelo consumo excessivo de bebida. Essa amnésia é causada por um dano que o álcool provoca no sistema nervoso central, levando o indivíduo ao esquecimento do que fez ou do que se passou durante o tempo da bebedeira.

Em geral, os adictos de nada se lembram do que fizeram quando sob efeito das drogas.  Esses “apagões” revelam lesões profundas no sistema nervoso central. 

Fomos resgatar um jovem reincidente no álcool e outras drogas e que, além de vender seus bens, como celular, notebook e impressora, ainda invadia o dormitório materno, desmontando a veneziana e retirando os pertences da mãe.

Como já tivesse sido internado anteriormente, sem concluir o tratamento, acabou sendo demitido do último emprego. A mãe apelou à delegada de Polícia e ao promotor, a fim de conseguir uma internação para o filho, mas estes alegaram que não podiam fazer nada. Então, desesperada, esta tomou a atitude de internar o filho numa clínica de recuperação, mesmo contra sua vontade.

O rapaz relutou muito, alegando, em “sã consciência”, que não havia cometido tais furtos e outros crimes dos quais era acusado (e era vezeiro – contumaz – nessa subtração de objetos e valores familiares).

E realmente, o jovem não mentia. Pois aqueles crimes haviam sido cometidos sob o efeito das drogas usadas durante a noite. Não conseguia se lembrar do que tinha feito. E desferia agressões verbais ao seu familiar, chamando-o de louco. Aqui, um parêntese: Pessoas há que, sabendo que tal remédio provoca sono, deixam de tomá-lo antes de assumir o volante ou realizar uma ação que exija concentração.

O bebedor tem consciência de que o álcool poderá leva-lo a cometer atos reprocháveis e mesmo um crime?

Cada um de nós elege os tipos de experiências que deseja trilhar nesta vida. Harmonia ou discórdia; castidade ou vício (dependência de álcool ou outras drogas), abraçar o trabalho, como caminho ético e recomendável, ou tomar atalhos, como praticar furtos, ainda que venha subtrair bens da própria família. Enfim, cada um de nós tem o direito de escolher: seguir o caminho reto ou o caminho dos enganos.

Somos todos livres nas ações, e depois da semeadura vem a colheita. Quando se semeia o bem, colhe-se o fruto da consciência em paz, o paraíso dentro da alma. Quando se semeia o mal, vêm as cobranças e as corrigendas. Os débitos se acumulam, a cobrança bate à nossa porta. A Lei de Ação e Reação, perfeita e infalível, cumpre-se inexoravelmente, para nossa própria redenção.

Devemos respeitar o livre-arbítrio das pessoas, suas vontades e vocações. Porém, na dependência química, é preciso considerar que o adicto tem prejudicada a sua capacidade de escolha, e a família, pensando na sua saúde, no seu bem e na sua recuperação, deve propor um tratamento involuntário.

E no caso daqueles que estão marginalizados, na rua, a Promotoria, em acordo com a Secretaria da Saúde e o Juiz, pode fazer a internação compulsória, porque o adicto por si só não consegue se ajudar e vai morrer na dor. Eis aí, portanto, uma situação em que o Estado poderá ser responsabilizado por omissão. Mas o maior responsável pelo que mal que nos ocorre nesta vida, em última palavra, será sempre o próprio homem. 

ARNALDO DIVO RODRIGUES DE CAMARGO é especialista em dependência química pela USP/SP-GREA e editor da Editora EME

RUBENS TOLEDO é jornalista e revisor da Editora EME por onde publicou seu romance Quando o amor vai embora