A Torre da Giralda, antigo minarete mouro transformado em campanário, é símbolo da cidade de Sevilha, na região da Andaluzia, Espanha, que durante a idade média foi uma das principais cidades de Al-Andalus e um dos focos da civilização árabe medieval. Além de sua participação na história da Espanha e do Ocidente, Sevilha foi importante centro de transmissão da cultura muçulmana para os cristãos.
Em 24 de outubro de 1833 subiu ao trono a rainha Isabel II, na época ainda uma criança. Foi um período extremamente conturbado, marcado por ministérios de curta duração, uma guerra civil, epidemias e até crises religiosas. Como consequência, grande parcela da população enfrentou graves problemas econômicos.
Foi neste cenário que, em 10 de dezembro de 1835, Amália Domingo Soler nasceu, justamente, em Sevilha.
Já órfã de pai, oito dias após seu nascimento ficou cega. Apesar de recuperar a visão aos três meses, os problemas de visão a seguiram por toda vida. Mesmo assim, começou a escrever aos 10 anos de idade e, aos 18, já publicava suas poesias.
Ida para Madri
Aos vinte cinco anos, Amália perdeu a mãe, iniciando a fase mais difícil de sua existência. O tratamento de sua debilitada saúde esgotou seus recursos, não tinha boa relação com seus familiares e era sozinha porque sequer conseguiu se casar. Foi quando se mudou para a capital espanhola, Madri, na esperança de melhores condições de vida.
Em vão: as dificuldades aumentaram e até fome ela passou. Foi quando pensou em se matar. Segundo alguns autores, é neste momento que sua mãe lhe aparece, causando em Amália uma impressão tão forte que ela busca conforto em uma igreja, reencontrando sua fé que não se abala nem quando quase perde a visão novamente. Desta feita, um médico homeopata a livra da cegueira – e ainda fala a respeito de uns “loucos” adeptos de um tal “espiritismo”, que tinham até um jornal, o El Critério. Apesar de materialista, o médico tinha um exemplar que emprestou à Amália.
Foi lendo seus artigos que ela conheceu o espiritismo e a compreensão que este apresentava sobre os sofrimentos da vida através da reencarnação.
Em ação pela doutrina
Para ter acesso a mais artigos espíritas, Amália, então, passa a escrever para os jornais e revistas doutrinárias, sendo que o primeiro de seus textos foi, justamente, uma poesia para o jornal El Critério que a recusou – publicada depois pelo periódico espírita La Revelación, de Alicante –, mas que publicou o primeiro artigo doutrinário de Amália, “La Fe Espiritista”. A partir de então, seus textos vão chamando a atenção.
Em 31 de março de 1875, Amália apresentou sua poesia “A la Memoria de Allan Kardec” aos membros da Sociedad Espiritista Española. Começava aí sua posição de destaque no seio do espiritismo espanhol. Primeiro em Alicante, depois em Múrcia, onde permaneceu por quatro meses recuperando-se de uma enfermidade. Voltou para Madri e, enfim, Barcelona, onde, apesar da volta dos problemas de visão, passa a comandar uma revista dedicada à mulher espírita, o periódico La Luz del Porvenir. A publicação foi suspensa após seu terceiro número por ordem das autoridades eclesiásticas, o que não intimidou Amália: no mesmo ano ela lançou O Eco da Verdade e seus escritos chegaram ao México, Cuba, Itália, Venezuela e Argentina, lhe rendendo codinomes como “poetisa das violetas” e “cantora do espiritismo”.
Foi também entre os espíritas barcelonenses que conheceu o médium Eudaldo Pagés y Coma, que se tornou seu colaborador e através do qual recebeu grande número de mensagens, inclusive as que foram reunidas no livro Memórias do Padre Germano (que trataremos maiores detalhes ainda neste texto).
A poetisa e a Torre
Amália faleceu em 29 de abril de 1909 aos 73 anos. Sua obra, junto à de outros pioneiros, foi a base para o renascimento do espiritismo espanhol após 40 anos de ditadura do General Franco, ultrapassando as fronteiras da península ibérica para atingir os países da América Latina.
Assim como a Torre de Giralda, que resistiu até a um terremoto, Amália se ergue triunfante, como que premiada por seu trabalho no campo da divulgação do espiritismo, mas também com as marcas dos dissabores superados com a fé raciocinada.
O padre
Não existe nenhuma pesquisa detalhada sobre quem foi Padre Germano, nem mesmo sobre onde viveu exatamente. O que se sabe é que ele foi um sacerdote francês que viveu, provavelmente, entre os séculos 18 e 19 na região norte da Espanha e/ou sudoeste da França, próximo ao litoral do Mediterrâneo.
Expulso de casa pelos pais quando criança, Germano foi morar na praia. Os pescadores, tocados pela situação do menino, o enviavam para levar peixes para um mosteiro próximo. Um dia ele encontrou a biblioteca do local, onde foi acolhido por um padre que lhe prometeu todo o conhecimento contido naqueles livros.
Germano seguiu o sacerdócio, consagrando-se à consolação dos humildes e oprimidos. Entretanto, ao defender a prática dos ensinamentos de Jesus ao pé da letra, passou a criticar os falsos religiosos e a desmascarar os hipócritas da igreja, denunciando os crimes cometidos pelos mais variados escalões do clero. Muitos dos dogmas católicos eram contrariados pelo jovem padre que, já a partir de sua primeira missa, passou a sofrer perseguições de seus companheiros de sacerdócio, enfrentando também muitos dissabores, insultos e até ameaças de morte.
A penitência e o diário
Como penitência, Germano foi enviado para uma pequena vila, passando a viver desterrado em obscura aldeia, exercendo suas funções entre os mais simples, buscando a companhia das crianças (principalmente as órfãs) e a regeneração dos chamados pecadores. Desta forma, foi construindo uma relação muito forte com aquela comunidade, tocando o coração de muitos que o procuravam cheios de rancor, ódio e violência, guiando a todos na jornada terrena, encaminhando-os para o caminho do arrependimento e da prática do bem.
Foi neste período que, ciente de seu papel na vida, registrou em um diário todas as situações vividas, suas angústias e incertezas – e os ensinamentos que retirou de cada uma delas.
Após sua morte, que parece ter sido por tuberculose, Germano manteve a necessidade de amar e instruir o próximo. Até que encontrou Eudaldo Pagés y Coma, médium falante e sonâmbulo inconsciente. Em 9 de maio de 1879, Germano se apresentou como San Germán del Prado, espírito protetor de Amália Domingos Soler. A partir de então, Germano passou suas histórias a Eudaldo enquanto Amalia as registrava. Foi somente em 29 de abril de 1880 que Amália começou a publicá-las em formato de novela no jornal espírita La Luz Del Porvenir. O trabalho de Germano, Eudaldo e Amalia durou até 10 de janeiro de 1884. Em 1890, o editor João Torrents, um dos fundadores de La Luz… teve a ideia de publicá-las em forma de romance mediúnico – um dos primeiros da literatura espanhola com temática espírita.
O romance
Com o título original de Memorias del padre Germán, o livro apresenta diversas histórias marcantes narradas em primeira pessoa pelo padre, relatando os vários acontecimentos de sua última encarnação.
Sua profunda mediunidade, numa época em que pouco se conhecia sobre espiritismo, aliada aos seus entendimentos de medicina, permitia a Germano fazer predições, intervenções, prestar o devido socorro tanto para salvar vidas como para ensinar o amor com suas palavras de consolo. Tudo isso, enfim, foi criando um halo de santidade em torno do padre. Mas até isso ele procura desmistificar, explicando suas ações que foram tidas como milagres pelo povo da época, que possuía, segundo ele, uma fé supersticiosa.
Publicado no Brasil pela primeira vez em 1917, Memórias do Padre Germano foi relançado pela Editora EME. É a grande oportunidade para os que ainda não conhecem este que é considerado um dos maiores clássicos da literatura espírita mundial ter contato com as histórias, os ensinamentos e os exemplos deste nobre sacerdote que soube honrar o evangelho de Jesus.
É um romance também recomendado para aqueles que buscam aprofundar-se no conhecimento espírita, pois, através do valor eterno de suas mensagens, compreendemos que o melhor caminho para a evolução é a prática do amor e da caridade. E que, como a vida terrena é uma fração mínima da verdadeira vida, a eterna, “as grandes e inveteradas virtudes, tanto quanto os múltiplos conhecimentos científicos, não se improvisam porque são a obra paciente dos séculos”, como ensinou a poetisa Amália.