E nós fizemos de novo. Comemoramos a chegada de um novo ano, como quem domina o tempo, aprisiona-o num calendário e escraviza-o num relógio. Fizemos a contagem regressiva como quem tem o poder de zerar o cronômetro e reiniciar um novo ciclo de 365 dias. Quão inocentes somos, pois o tempo não se aprisiona, não se escraviza. Nós é que somos seus escravos, sempre correndo contra ele, lutando contra ele e até driblando o que dele nos resta.
Uma mentira chamada ‘calendário’
O calendário é um engodo. Ele finge dominar o tempo, colocando em divisões mensais, semanais, diárias. Nele, temos a sensação de comandar o tempo, controlar o futuro. Mas, se o calendário é um grande aliado para não esquecermos o dentista da próxima quinta-feira, ele nada serve para o futuro. Os seus 365 dias são um embuste estabelecido por uma comissão de matemáticos reunidos pelo Papa Gregório 13, em 1582. Neste período, o calendário utilizado desde o Império Romano, já contava com um atraso de dez dias em relação ao ano solar. O tempo real que a Terra leva para dar uma volta em torno do sol, duras 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 45,97 segundos. Na tentativa de acertar as contas, criou-se o ano bissexto, que manteve um descompasso de 44 minutos e 56,12 segundos com relação à natureza. A comissão de matemáticos optou, então, que, a cada século múltiplo de 100, não haveria ano bissexto. Simples assim: de século em século, cai o ano bissexto – mas que é restituído de 400 em 400 anos. E os dez dias em atraso? O Papa simplesmente decretou que eles sumiram. Surpresa? Nem tanto.
O futuro já começou (?)
Gregório 13 fez o que fazemos todos os dias 31 de dezembro: Acreditamos controlar o tempo e decidir o avanço (ou não) dele. Então, somos surpreendidos quando nos deparamos com catástrofes que ceifam centenas de vidas, como se isso não fizesse parte do roteiro estabelecido às festas de fim de ano. As contas chegam pelo correio, os problemas estão lá, da mesma forma que os deixamos – mas eles não deveriam ter ficado no ano velho? Naquele ano cuja morte decretamos, saudando o novo ciclo com queima de fogos, bebidas, comidas, abraços e votos emocionados? A natureza está em fúria, destruiu lares que comemoravam, matou um monte de gente? Mas por quê? Se a reunião dos líderes mundiais não resolveu a urgente questão ambiental, todos iniciaram o novo tempo imbuído das mais profundas e sinceras convicções ecologicamente corretas para salvar o planeta! Agora sim! Aquela musiquinha da tv informa que todos os nossos sonhos serão verdade e que o futuro já começou!
Ah, o futuro… Há quanto tempo ele “já começou”? Aproveitando o embalo musical, me lembro de uma canção do Lulu Santos, Tempos Modernos, que começa assim: Eu vejo a vida melhor no futuro/ Eu vejo isso por cima de um muro de hipocrisia/ que insiste em nos rodear (…). A música dá nome ao primeiro disco de Lulu Santos, que é de 1982. Passados 37 anos, portanto, a que futuro ele se referia? Já alertava Emmanuel, no livro Taça de Luz, psicografado por Chico Xavier, que “Não adianta indagar do futuro, ocasionalmente, para satisfazer a curiosidade irrequieta ou inútil. Vale construí-lo em bases que a lógica nos traça generosamente à visão. Não desconhecemos que o nosso amanhã será a invariável resposta do mundo ao nosso hoje, e aos nossos pés a natureza sábia e simples nos convida a pensar”. Espíritos imortais que somos, nosso destino é progredir, sempre. Alguns, mais rapidamente, outros nem tanto. Mas todos progridem, isso é certo. Portanto, nosso futuro está garantido e nisso consiste a confiança irrestrita num Deus justo e bom. Ao nos afligirmos com relação ao futuro, ao tentarmos controlá-lo, escravizá-lo na contagem regressiva do réveillon, ou nas páginas do calendário, em verdade estamos negligenciando o presente, o dia de hoje, o “agora”. Estamos, justamente, desperdiçando nosso tempo.
E, como nos canta Lulu Santos na música já citada, “não há tempo que volte, amor/ Vamos viver tudo o que há para viver/ Vamos nos permitir”.
Permita-se!
Permita-se, portanto, vivenciar o dia de hoje como dádiva divina, presente de um Pai amoroso, ainda que encoberto por lágrimas. Se o futuro nos permanece oculto é exatamente para não negligenciarmos o presente, deixando de agir com nosso livre-arbítrio, essencial para nosso progresso. Pois “o tempo voa, amor. Escorre pelas mãos, mesmo sem se sentir”. Observemos como utilizamos nosso tempo, valendo-nos dele para instalar o que há de melhor em nós, pois os dias que passam, vazios e inúteis, não mais voltarão, ainda que insistamos em zerar o calendário, ano após ano…
Sabemos que há um recomeço, para que a lei de progresso e de aperfeiçoamento se cumpra. Mas que não está, exatamente, nas noites de réveillon.
Feliz Ano-Novo!
GEORGE DE MARCO é jornalista-redator das publicações periódicas da Editora EME