Naquela madrugada fria, de inverno, minha mãe levantou, preparou o almoço, o café e o pão amanhecido e assim, preparando minha cesta para a alimentação de mais um dia de trabalho, me chamou para levantar, com alegria no rosto. Eu era ainda adolescente, e junto com outros dois irmãos íamos para a roça cortar cana. Precisávamos estudar à noite e trabalhar de dia para ajudar em casa.
Era eu o sétimo filho de um casamento de onze, em que sobreviveram dez. Minha mãe, Maria Dolores, analfabeta, filha de imigrantes espanhóis, era casada com meu pai José, filho de um caboclo com mestiça índia, semialfabetizado, trabalhador na “conserva” (conservar as linhas do trem, cuidar dos dormentes de madeira e pedra que calçavam a linha férrea) da usina dos franceses, Société Sucrière, na vizinha cidade de Rafard.
Que privilégio de ser filho deste casal! Educou com severidade e amor os filhos, obrigando todos a concluírem o ensino médio, coisas que eles não tiveram; dentre os filhos, alguns cursaram faculdade, e todos sem dependência de álcool ou fumo – visto que na família dos meus tios tínhamos quatro deles alcóolatras. (Infelizmente, 10% da população do Brasil faz abuso do álcool e são dependentes dele, segundo recentes pesquisas médicas.)
Cáritas
Agora, próximo ao dia das mães, lembro-me de minha velha querida, Maria Dolores Garcia (02-06-1913/29-10-2010), que aos 97 anos retornou à vida espiritual, para endereçar ao Deus Bondoso uma prece de gratidão por ser seu filho nesta encarnação (meu pai viajou bem mais cedo, com 74 anos – José Rodrigues de Camargo, 26-04-1915/30-08-1989). Ainda a vejo deitada no leito, onde permaneceu por mais de três anos antes de falecer, sempre conversando e alegre com nossa presença. Não podia sair de lá sem ler uma página de O Evangelho segundo o Espiritismo, edição da EME, a Prece de Cáritas, que ela acompanhava de cor palavra por palavra.
Quando a visitava, as lembranças eram muitas. Ela declamava as cantigas espanholas que sua mãe a havia ensinado, contava dos seus sonhos – entre eles, relembro um que ela quis que fosse realizado. Ela tinha sonhado com seu finado marido, meu pai, e ele lhe disse que, para ficarem juntos do outro lado, teriam que estar casados na mesma religião. Então ela, que era católica, foi se batizar na religião de meu pai, fazendo assim a vontade do espírito – a doação e o amor não duraram apenas na vida material, mas também na espiritual.
Grau de mérito
No livro Sexo e destino, André Luiz participa de um júri onde diversos casos são analisados, como a separação de casais, intercessão por filhos ainda na Terra, e ele pergunta ao espírito Amantino, que tem a função de juiz na colônia espiritual, qual a porcentagem dos encarnados que regressam de forma irrepreensível da existência terrestre. O juiz Amantino responde que, em quase 80 anos consecutivos de trabalhos no Além, a média de irrepreensibilidade não passava de 5 em cada mil pessoas, não obstante surgirem fichas honrosas de muitos que alcançavam mais de 90% na condição de distinção, o que, no referido instituto, representava elevado grau de mérito.
Creio que esse casal, Maria e José, pela determinação, pelas lutas e vitórias na Terra, pelos sacrifícios para criar uma prole tão grande e educá-la na moral cristã, só podem estar entre esses selecionados (minha mãe só pôde frequentar os bancos escolares com mais de 70 anos, para poder assinar o seu nome).
Eu sou filho desta mulher destemida e abençoada, que fazia o almoço de madrugada (minestra – arroz com feijão) para eu trabalhar de dia como boia-fria e estudar à noite e um dia chegar a ser editor de mais de 500 livros espíritas, divulgados para todo o Brasil.
Feliz dia das mães para todas as mulheres do Brasil! Para aquelas que pariram filhos e também para aquelas que pariram livros.
ARNALDO DIVO RODRIGUES DE CAMARGO é editor da Editora EME